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OPINIÃO! "Medalhões e xiboletes". Leia novo artigo do juiz Antonio Cavalcante

Medalhões de xiboletes

Juiz Antonio Cavalcante (Foto: Brejo.Com)
É uma delícia ler e reler a Teoria do Medalhão, de Machado de Assis. Um pai conversa com o filho, que acaba de festejar a maioridade. Diante das várias possibilidades de carreira a seguir, como “entrar no parlamento, na magistratura, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes”, nenhum ofício, no dizer do pai, parece mais útil que o de medalhão.

Para ser medalhão, melhor não ter ideias, é preciso reduzir o intelecto ao equilíbrio comum. É recomendável valer-se de frases feitas, poupando os outros de esforço inútil. Não se pode esquecer o cuidado com a publicidade. Em vez de escrever um tratado científico sobre criação de carneiros, é preferível comprar um carneiro para banquetear os amigos num jantar, que a notícia se espalha: “Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo.”

Num dado momento, o filho diz não ser nada fácil o que lhe ensina o pai. Este concorda, dizendo que é mesmo difícil, “come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida!” Porém, para quem triunfa, acabou-se a necessidade de farejar oportunidades, pois estas é que virão ao encontro do medalhão, ofício que não exclui nenhuma outra atividade.

O filho, então, indaga se nem a política fica de fora desse ofício, ao que o pai responde que não. Basta não violar certas regras. A pessoa pode pertencer a qualquer partido, “liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilidade do scibboleth bíblico.”

Scibboleth, que pode ser escrito e pronunciado como xibolete, é uma espécie de senha, gesto ou sinal que permite identificar alguém como pertencente ou não a determinado grupo. É célebre a cena de Bastardos Inglórios, em que um militar britânico, durante a Segunda Guerra Mundial, quer se passar por alemão, mas é desmascarado por um gesto aparentemente banal. Ao pedir três copos de bebida, ele faz o número três com a mão, como nós fazemos aqui, usando os dedos indicador, médio e anelar, ou melhor dizendo, fura-bolo, maior de todos e seu vizinho, enquanto na Alemanha esse gesto seria feito com o polegar, também conhecido como cata-piolho, o indicador e o médio.

A origem do xibolete vem da narrativa de um conflito bem mais antigo que o dos Bastardos Inglórios. O livro dos Juízes fala de uma guerra entre os homens de Efraim e Gileade. Os efraimitas, derrotados, tentavam fugir pelos baixios do Jordão, dominados pelos inimigos. Quando um fugitivo pedia passagem, os gileaditas perguntavam se ele era efraimita. Este, para não morrer, dizia que não. O inimigo, para testá-lo, mandava que dissesse a palavra xibolete, que significava espiga ou curso de água. Só que os efraimitas não conseguiam pronunciar corretamente, diziam sibolete, sendo capturados e degolados. Conta-se que na ocasião morreram mais de quarenta mil.

Os xiboletes, como observa Flavio Morgenstern, estão por toda a parte e insistem em dominar nossas mentes. Especialmente nos discursos extremistas, no qual o saudável debate político dá lugar a expressões de ódio e intolerância. Parece que a linguagem não tem referência numa realidade capaz de avaliar racionalmente as ideias. O vocabulário é recheado de bordões, alguns vazios e irrefletidos, lançados como senhas para reforçar o pertencimento a determinado grupo e xingar o outro que não pensa igual a você, como se as pessoas quisessem, como os gileaditas, degolar, um a um, os que não rezam na sua cartilha.

Cada vez que vejo um grupo político cuja maior ocupação é endeusar seu líder, ou formação de aliança para um grotesco puritanismo nacional, penso que devemos cuidar para que os xiboletes não sejam pretexto para a degola da sanidade democrática.   quando leio uma notícia de que um gabinete de um julgador emitiu uma nota para dizer o que quis dizer um voto por ele proferido, tendo um colega afirmado que para compreender o voto seria preciso um professor de javanês; ou quando me deparo com celebridades que ostentam suas hordas de seguidores nas redes sociais, e influenciam milhares de mentes por serem medalhões, tenho a certeza de que a fina ironia de Machado de Assis continua mais viva do que nunca.

Por Antônio Cavalcante (juiz, escritor e professor universitário)
Publicada por F@F em 21.01.2020, às 23h50
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