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OPINIÃO! Em novo artigo, juiz Antonio Cavalcante desnuda a realidade brasileira

O Brasil real e o Auto da Compadecida

Escritor Antonio Cavalcante (Foto: Reprodução)
Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Ariano Suassuna diz que um dia, lendo Alfredo Bosi, encontrou uma distinção feita por Machado de Assis, que Ariano considerava fundamental para compreender nossa história. Machado fazia duras críticas aos atos do mau governo e da má política. Explicava, porém, que não se tratava de fazer pouco de nosso país, pois “o ‘país real’, esse é bom, revela os melhores instintos. Mas o ‘país oficial’, esse é caricato e burlesco”.

O Brasil real não é o simbolizado por corporações de homens de negócio, de doutores das leis dos templos ou das cortes de justiça, muito menos por inquilinos de palácios, cujos tronos são cobiçados por opositores dispostos a tudo para ocupá-los. O país real de Ariano é o do beato Antonio Conselheiro e da repentista Mocinha de Passira, é o que “habita as favelas urbanas e os arraiais do campo.” É no fundo do peito desse país autêntico que pulsa, mais viva do que nunca, a arte do imortal Suassuna.

Para se ter uma ideia, mesmo nestes tempos de sortimento no acesso ao entretenimento audiovisual, o retorno do Auto da Compadecida à TV aberta foi um sucesso. Baseada na peça escrita em 1955, o programa já havia sido, vinte anos atrás, a minissérie de maior audiência no Brasil, transformada em filme com bilheteria de mais de dois milhões de espectadores.

Sobre o retorno, o diretor Guel Arraes disse que afora o valor artístico atemporal da obra, o grande benefício foi mostrar, mais uma vez, o Brasil real sufocado pelo oficial: "a gente está vivendo muito no Brasil oficial, é só Brasília, quem vai ganhar a eleição, política, e o Brasil real está aí, com um monte de João Grilo e Chicó, que sobrevivem sem nenhuma assistência. Quase não tem mais ligação entre esses dois mundos.”

Observou ainda que esses personagens trazem para nós o Brasil real. Por isso são críveis. Não são de esquerda nem de direita. Enquanto alguns da esquerda acham que podem incitar o povo a uma rebelião à sua imagem e semelhança, e outros, da direita, querem teleguiar as massas com doutrinamento ufanista ou palmatória religiosa, João Grilo, alheio a tudo isso, não nos deixa esquecer que antes de qualquer coisa,  o pobre precisa se virar para sobreviver. 

O pobre que precisa se virar, representado por João Grilo, é um personagem atemporal, como é o Carlitos de Charles Chaplin. Roland Barthes observa que o Carlitos do filme Tempos Modernos encarna o proletário, mas não de forma panfletária. Definido pela natureza de suas necessidades, como o pobre que tem fome, Carlitos revela uma força estética que nenhum manifesto político foi capaz de expressar. Ou no dizer de Barthes, “nunca nenhuma obra socialista conseguiu exprimir a condição humilhada do trabalhador com tanta violência e generosidade.”

Repleto de personagens com força estética semelhante, o Auto da Compadecida vai muito além de uma comédia regional. Com a graça que lhe é peculiar, a peça nos faz pensar sobre questões humanas universais, como fome e exploração, Deus e religião, pobreza e corrupção, ética e justiça, morte e salvação. E a cena do julgamento final, como lembra Henrique Oscar, é a chave para a compreensão do seu sentido.

De um lado, o diabo, o encourado, é o obcecado acusador dos pecadores, que a todos quer tanger para o inferno. Do outro, a Compadecida, que apela ao Filho para, no julgamento, considerar a triste condição do ser humano que, levado por seus medos, acaba por fazer o que não presta quase sem querer. Presidindo o julgamento, entra em cena Jesus, o Manuel, em toda sua glória de negro simples e bondoso. Nesse cenário, vemos a face de uma justiça diferente da que às vezes praticamos em nossas cortes, com chicanas e formalismos que desfiguram sua razão de ser, e contemplamos uma religião de intimidade entre o divino e o humano, sem pompa e alarido.

Há sempre o que se aprender com o Auto do mestre Ariano, que nunca deixou de exaltar o Brasil real. Não vale a pena agir como o encourado, que se move pelo ódio às pessoas. Por nunca ter sido humano, ele não entende o medo da morte, da fome, da dor e da solidão. A ira santa contra os males do mundo caminha ombro a ombro com a justiça. Não faz sentido, porém, um ódio do bem, por ser ele de esquerda ou de direita. No final, só a fé na misericórdia há de nos salvar, como fez com João Grilo, por intercessão da Compadecida.  

Por Antonio Cavalcante (escritor, juiz da Vara do Trabalho em GBA)
Publicada por F@F em 10.03.2020, às 17h53
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