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Depois de morar nas ruas e passar fome, brasileira vira doutora em universidade da Inglaterra

Ela pensou em desistir, mas foi apenas aos 39 anos que se sentiu livre pela primeira vez

Clarice (Foto: Arquivo Pessoal/Clarice Fortunato)
São Paulo (SP) - Desde que nascemos, somos perpassados por nossas vivências, nossa realidade e experiências. Cada um vive de acordo com o próprio local, reproduz tudo aquilo com que teve contato ao longo da vida e fala a partir da sua estrutura.

Isso significa que, a partir do que experienciamos, temos o nosso lugar de fala, propriedade para falar sobre tudo aquilo que nos tangencia, sendo crivados pela própria realidade.

Clarice Fortunato nasceu em uma fazenda no Paraná, local bem simples, sem eletricidade, sem banheiro dentro das instalações que ela dividia com 12 irmãos. O pai trabalhava para o dono do lugar. Seus pais fugiram da Bahia. Quando ela tinha apenas 5 anos, ele disse que ia à cidade, e nunca mais retornou. No primeiro momento, ninguém achou estranho, já que era comum ficar até uma semana por lá.

Depois de algum tempo, a família encontrou as roupas do pai e o relógio, que nunca saía do seu pulso, escondidos perto de um rio. A mãe ficou muito impressionada, e foi à delegacia fazer a denúncia, informando que o marido havia desaparecido.

Os policiais conversaram com os fazendeiros, e depois informaram que não começariam as buscas naquele dia porque estavam sem o material adequado. No dia seguinte, o dono da fazenda mandou aterrar o tanque. Indignada, a mãe foi pedir explicações, e isso fez com que fossem expulsos das terras.

Mesmo com o irmão mais velho já tendo saído de casa, ainda restavam 13 crianças que viviam ali, e a matriarca não encontrou outra forma de lidar com aquela situação a não ser “doando” cada uma delas.

Três meninas se juntaram com homens que conheciam muito pouco e o resto foi sendo deixado pelo caminho. Era a casa de um amigo, de um padrinho ou qualquer pessoa que pudesse oferecer criação às crianças. Segundo relato de Clarice à Marie Claire, apenas ela ficou ao lado da mãe, e as duas se mudaram para a parte urbana de Terra Rica, no Paraná.

Elas se mudaram para a casa de uma irmã que já havia chegado à cidade, e a esperança era que lá existisse trabalho e uma fonte de renda. Em apenas alguns dias, a mãe de Clarice começou a namorar e logo os três foram morar juntos, mas como o homem bebia muito e não trabalhava, e ela também não conseguia emprego, em apenas um mês acabaram despejados.

Clarice passou a viver nas ruas, e o medo tomou conta dela. Tinha medo de estupro, roubo e de algo acontecer com a mãe, aquilo a consumia tanto, que era impossível dormir à noite.

Clarice nasceu em uma fazenda simples no Paraná e, depois do desaparecimento do pai, a mãe precisou entregar outros 12 filhos para adoção, e as duas foram morar nas ruas (Foto: Edição/O Segredo/Arquivo Pessoa/Clarice Fortunato)
Durante o dia, ela andava de uma cidade para outra, alimentava-se com o que recebia de doações e bebia água de poças que encontrava nas ruas. Se houvesse algum rio, aproveitavam para tomar banho e lavar as roupas, mas a realidade era tão difícil, que a menina desmaiava com frequência de fome e sede.

Os três seguiam andando e chegaram a encontrar uma chácara, onde decidiram ficar. O padrasto disse que iria sair para procurar emprego, mas como sempre aquilo era apenas uma desculpa para beber. Cansada daquela situação, a mãe decidiu se impor, mas eles acabaram discutindo e o homem acertou-lhe um soco no olho, e foram expulsos do local por conta da confusão.

Por causa dessa agressão, a mãe ficou cega em poucos dias. Elas não pararam de percorrer as cidades, o que mudou foi que agora Clarice precisava puxá-la pelo braço e guiá-la pelos caminhos. A mãe conseguiu um tratamento contra a cegueira em Curitiba, onde ficaram pouco, já que ela sentiu saudade do antigo companheiro, que estava em Londrina.

Elas voltaram e os três passaram a morar na mesma casa e dormir na mesma cama. Mesmo enfrentando problemas com essa situação, a menina queria apenas pensar em realizar seu grande sonho: começar a estudar.

Para conseguir isso, ela precisava ter registro de nascimento; a mãe lembrava o dia em que Clarice nasceu e o ano foi calculado de forma aproximada. Elas chegaram à conclusão de que a menina tinha 10 anos, e assim começou os estudos.

Mas a nova rotina logo acabou, quando a irmã descobriu que a mãe tinha sido aposentada por invalidez e começou a receber um dinheiro, levando as duas para sua casa. Ela parou de frequentar a escola e logo depois o irmão foi visitá-las e se assustou com a miséria em que viviam, e decidiu levar todo mundo para Pinheiral. Mas o lugar era muito frio, e a mãe começou a desenvolver algumas doenças relacionadas à desnutrição vivida por anos, e acabou morrendo no colo de Clarice.

Sem a mãe, ela decidiu sair dali e procurar um emprego onde pudesse ganhar dinheiro e, quem sabe, voltar a estudar. Como era menor de idade, ela pediu a uma família para quem trabalhava como doméstica assinar um termo de responsabilidade.

Os patrões concordaram, mas deixaram bem claro que ela não era filha deles, que não tinha direito a nada naquela casa e ainda por cima parou de receber o salário, mesmo tendo recebido muito mais trabalho.

Clarice cozinhava, lavava, passava, cuidava dos três filhos do casal e não recebia nem um centavo por isso, como se o termo de compromisso que eles assinaram fosse o suficiente. Os anos se passaram e ela começou a sentir vergonha de frequentar a escola, principalmente porque já tinha 19 anos e ainda estava frequentando o ensino fundamental.

Ela parou de trabalhar com aquela família e arrumou emprego em outro lugar, mudou-se de cidade e conheceu uma funcionária na Universidade Federal, que a incentivava diariamente a estudar e fazer o vestibular. Aos 25 anos, depois de se dedicar aos estudos com um pouco mais de tempo, Clarice foi aprovada nas universidades Estadual e Federal, em dois cursos, Biblioteconomia e Letras.

Ainda trabalhando como doméstica, seu início na faculdade foi difícil. Trabalhava até as 17h para só então correr e chegar às 18h30 à aula. Ficava ali até 22h30, voltava para casa e no dia seguinte precisava servir o café da manhã às 6h para a família dos patrões.

No fim do curso, Clarice conheceu uma outra família que pagava muito bem para que ela trabalhasse como babá de sexta à tarde até segunda de manhã, e foi isso que fez com que conseguisse estudar.

Sete anos depois de começar o curso, conseguiu se formar e começou um mestrado em literatura. Virou assistente pessoal do patrão, um cargo de confiança, que exigia que pagasse contas, fizesse compras, tendo acesso às senhas de banco e cartões. Mesmo sendo ótimos e tendo ficado ali por cerca de 10 anos, não era nisso que gostaria de trabalhar.

Com muito esforço, Clarice conseguiu uma bolsa para o doutorado e, pela primeira vez, aos 39 anos, sentiu-se livre. Recebia dinheiro para fazer o que sentia prazer, sem precisar pedir nada para ninguém, sem ter patrão. Depois de um tempo, candidatou-se para fazer doutorado sanduíche na Inglaterra, e conseguiu a vaga, indo morar em Exeter, uma cidade medieval, em 2015.

Enquanto fazia sua pesquisa, soube, com uma voz interior que, ao invés de analisar “Gabriela Cravo e Canela”, de Jorge Amado, deveria contar a própria história. E foi o que fez. Escreveu o livro “Da vida nas ruas 

De O Segrego
Publicada por F@F em 25.07.2021
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